Da Função da Poesia Moderna

João Cabral de Melo Neto
Tese apresentada ao Congresso da Poesia de São Paulo, 1954

Embora o que se costuma chamar de “poesia moderna” seja um coisa multiforme demais, não é excessivo querer descobrir nela um denominador comum: seu espírito de pesquisa formal. Esse espírito tem caracterizado as diversas gerações que se vêm sucedendo no período dito moderno, ainda que não se possa afirmar seja a pesquisa da forma o motivo modal da criação poética de cada uma dessas gerações.
O poeta moderno, em geral, justifica sua necessidade das inovações formais que é levado a introduzir na sua obra, a partir de uma das duas seguintes atitudes mentais: a – a necessidade de captar mais completamente os matizes sutis, cambiantes, nefáveis, de sua expressão pessoal e b – o desejo de apreender melhor as ressonâncias das múltiplas e complexas aparências da vida moderna. Mas, apesar da aparente oposição dessas duas atitudes – uma subjetiva outra objetiva – as pesquisas formais a que são levadas as duas famílias de poetas estão, no fundo, determinadas pelas condições que a vida moderna, em seu conjunto, impõe ao homem de hoje. A realidade exterior tornou-se mais complexa e exige, para ser captada, um instrumento mais maleável e de reflexos imediatos. E a realidade interior, daí decorrente, tornou-se também mais complexa, por mais inespacial intemporal que o poeta pretenda ser, e passou a exigir um uso do instrumento da linguagem altamente diverso do lúcido e direto dos autores clássicos.
A necessidade de exprimir objetiva e subjetivamente a vida moderna levou a um certo tipo especializado de aprofundamento formal da poesia, à descoberta de novos processos, à renovação de processos antigos. Afirmá-lo não significa dizer que cada poeta de hoje é um poeta mais rico. Pelo contrário: esse aprofundamento deu-se por meio de uma como desintegração do conjunto da arte poética, em que cada autor, circunscrevendo-se a um setor determinado, levou-o às últimas consequências. A arte poética tornou-se, em abstrato, mais rica, mas nenhuma poeta até agora se revelou capaz de usá-la, em concreto, na sua totalidade.
Esse enriquecimento técnico da poesia moderna manifestou-se principalmente nos seguintes aspectos: a – na estrutura do verso (novas formas rítmicas, ritmo sintático, novas formas de corte e enjambement); b – na estrutura da imagem (choque de palavras, aproximação de realidades estranhas, associação e imagística do subconsciente); c – na estrutura da palavra (exploração dos valores musicais, visuais e, em geral, sensoriais das palavras: fusão ou desintegração de palavras; reestruturação ou invenção de palavras, de onomatopeias); e e – na disposição tipográfica (caligramas, uso de espaço em branco, variações de corpos e família de caracteres, disposição sistemática dos apoios fonéticos ou semânticos).
Em consequência de não se terem fixado tipo de poemas capazes de corresponderem as exigências da vida moderna, o poeta contemporâneo ficou limitado a um tipo de poema incompatível às condições de existência do leitor moderno, condições a que este não pode fugir. A apresentação (não organizada em formas “cômodas” ao leitor) de sua, rica embora, matéria poética faz da obra do poeta moderno uma coisa difícil de ler, que exige do leitor lazeres e recolhimento difíceis de serem encontrado nas condições da vida moderna. Cada tipo de poema que conheceu a literatura antiga nasceu de um função determinada; ajustar-se às exigências da estrutura perfeitamente definida do poema era, para o poeta, adaptar sua expressão poética às condições em que ela poderia ser compreendida e, portanto, corresponder as necessidades do leitor. O poema moderno, por não ser funcional, exige do leitor um esforço sobre-humano para se colocar acima das contingências de sua vida. O leitor moderno não tem a ocasião de defrontar-se com a poesia nos atos normais que pratica durante sua rotina diária. Ele tem, se quer encontrá-la, de defender dentro de seu dia um vazio de tempo em que possa viver momentos de contemplação, de monge ou de ocioso.
Talvez a explicação desse aspecto da poesia moderna esteja na atitude psicológica do poeta de hoje. O poeta moderno, que vive no individualismo mais exacerbado, sacrifica ao bem da expressão a intenção de se comunicar. Por sua vez, o bem da expressão já não precisa ser ratificado pela possibilidade de comunicação. Escrever deixou de ser para tal poeta atividade transitiva de dizer determinadas coisas a determinadas classes de pessoas; escrever é agora atividade intransitiva, é, para esse poeta, conhecer-se, examinar-se, dar-se ao espetáculo; é dizer uma coisa a quem puder entendê-la ou interessar-se por ela. O alvo desse caçador não é o animal que ele vê passar correndo. Ele atira a flecha de seu poema sem direção definida, com a obscura esperança de que uma caça qualquer aconteça achar-se na sua trajetória.
Como a necessidade de comunicação foi desprezada e não entra para nada em consideração no momento em que o poeta registra sua expressão, é lógico que as pesquisas formais do poeta contemporâneo não tenham podido chegar até os problemas de ajustamento do poema à sua possível função. As conveniências do leitor, as limitações que lhe foram impostas pela vida moderna e as possibilidades de receber poesia, que esta lhe forneceu, embora de maneira não convencional não foram jamais consideradas questão a resolver. A poesia moderna – captação da realidade objetiva moderna e dos estados de espírito do homem moderno – continuou a ser servida em envólucros perfeitamente anacrônicos e, em geral imprestáveis, nas novas condições que se impuseram.
Mas todo esse progresso realizado limitou-se aos materiais do poema: essas pesquisas limitaram-se a multiplicar os recursos de que se pode valer um poeta para registrar sua expressão pessoal; limitaram-se àquela primeira metade do ato de escrever, no decorrer da qual o poeta luta por dizer com precisão o que deseja; isto é, tiveram apenas em conta consumar a expressão, sem cuidar de sua contraparte orgânica – a comunicação.
Desse modo, essas pesquisas não atingiram, em geral, o plano da construção no poema no que diz respeito à sua função na vida do homem moderno. Apesar de os poetas terem logrado inventar o verso e a linguagem que a vida moderna estava a exigir, a verdade é que não conseguiram manter ou descobrir os tipos, gêneros ou formas de poemas dentro dos quais se organizassem materiais de sua expressão, a fim de tornarem-se capaz de entrar em comunicação com o homem nas condições que a vida social lhe impõe modernamente.
O caso do rádio é típico. O poeta moderno ficou inteiramente indiferente a esse poderoso meio de difusão. À exceção de um ou outro exemplo de poema escrito para ser irradiado, levando em conta as limitações e explorando as potencialidades do novo meio de comunicação, as relações da poesia moderna com o rádio se limitam à leitura episódica de obras escritas originalmente para serem lidas em livro, com absoluto insucesso, sempre, pelo muito que diverge a palavra transmitida pela audição da palavra transmitida pela visão. (O que acontece com o rádio, ocorre também com o cinema e a televisão e as audiências em geral).
Mas os poetas não desprezam apenas os novos meios de comunicação postos a seu dispor pela técnica moderna. Também não souberam adaptar às condições da vida moderna os gêneros capazes de serem aproveitados. Deixaram-nos cair em desuso (a poesia narrativa, por exemplo, ou as aucas catalãs, antepassadas das histórias de quadrinhos), ou deixaram que se degradasses em gêneros não poéticos, a exemplo da anedota moderna, herdeira da fábula. Ou expulsaram-nos da categoria de boa literatura, como aconteceu com as letras das canções populares ou com a poesia satírica.
No plano dos tipos problemáticos, tudo que os poetas contemporâneos obtiveram, foi o chamado “poema” moderno, esse híbrido de monólogo interior e de discurso de praça, de diário íntimo e de declaração de princípios, de balbucio e de hermenêutica filosófica, monotonamente linear e sem estrutura discursiva ou desenvolvimento melódico, escrito quase sempre na primeira pessoa e usado indiferentemente para qualquer espécie de mensagem que seu autor pretende enviar. Mas esse tipo de poema não foi obtido através de nenhuma consideração acerca de sua possível função social de comunicação. O poeta contemporâneo chegou a ele passivamente, por inércia, simplesmente por não ter cogitado o assunto. Esse tipo de poema é a própria ausência de construção e organização, é o simples acúmulo de material poético, rico, é verdade, em seu tratamento do verso, da imagem e da palavra, mas atirado desordenadamente numa caixa de depósito.
Conclusão: acredita o autor que a consideração desses aspecto da poesia contemporânea pode contribuir para a diminuição do abismo que separa hoje em dia o poeta e o leitor. Não que acredite em que uma consciência nítida desse fato anule completamente esse abismo. A seu ver, as razões de tal divórcio residem mais bem na preferência dos poetas pelos temas intimistas e individualistas. Mas acredita também que pesquisas na medida em que se encontrarem formais ajustadas às condições da vida do homem moderno, principalmente através da utilização dos meios técnicos de difusão que surgiram em nossos dias, poderá contribuir para resolver, ao menos até certo ponto, o que lhe parece o problema principal da poesia hoje – que é o da sua própria sobrevivência. Quando nada, pensa, a consciência deste problema poderá ajudar aqueles poetas contemporâneos menos individualistas, capazes de interesse por temas da vida em sociedade e que também não encontraram ainda veículo capaz de levar a poesia à porta do homem moderno. A falta de tal veículo está, também, condenando a poesia destes últimos autores à espera, desesperançada, de leitores que venham espontaneamente a sua procura, leitores, de resto, cada dia mais problemáticos.